23 de dezembro de 2006

OLIVEIRA SILVEIRA NO PORTAL AFRO (www.portalafro.com.br)

O poeta Oliveira Silveira mora em Porto Alegre...

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"Porto Alegre sempre teve negros. Antigamente residiam apenas negros no Bairro Colônia, por exemplo. Depois, após a Segunda Guerra Mundial, os terrenos foram adquiridos pelos judeus e os negros afastados para a periferia. Rio Branco e Bonfim também são redutos negros históricos da capital gaúcha."

...mas nasceu em Rosário do Sul, município situado na fronteira oeste do estado do Rio Grande do Sul, em 1941. Foi criado na zona rural, na Serra do Caverá, região famosa graças a revolução de 1923, palco das atividades do revolucionário Honório Lemes. Formado em Letras, Oliveira Silveira é pesquisador e historiador, além de ter o mérito de ser um dos idealizadores da transformação do 20 de novembro em data máxima da comunidade negra brasileira.

Nesta entrevista o escritor desmitifica a imagem do gaúcho, que como tipo social é unicamente apresentado como branco. Na realidade, segundo Silveira, o gaúcho é também negro, pela própria história do estado, que já contava com escravos desde sua formação:

"Havia escravos nos campos e na lida rural, onde até hoje a presença negra é marcante. Para tanto, basta visitar as estâncias do interior e constatar a presença de negros trabalhando como peões."

Portal: Fale-nos sobre seus livros...

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MÃE-PRETA

Filho de branca babujou teu seio,
negrinho berrou e berrou,
sinhá nenhuma amamentou.
Por que não existe mãe-branca?
Por que não existe mãe-branca?

- Mãe branca?
ora já se viu
é muito desaforo!

Oliveira Silveira
Roteiro dos Tantãs

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Oliveira Silveira - Tenho dez títulos publicados, a maioria em antologias como "Cadernos Negros", "Axé", de Paulo Colina, "Razão da Chama" e o "Negro Escrito", ambos de Osvaldo de Camargo. Também tenho textos publicados no exterior. Na Alemanha, numa coletânea com outros autores negros brasileiros, editada no final de 1988. Nos Estados Unidos, em revistas das universidades de Virgínia e da Califórnia, juntamente com Paulo Colina, Osvaldo Camargo e outros.

Portal – Sua terra natal influenciou sua carreira? Como?

Oliveira Silveira – Sim. Isto se deu através da escola. No início estudava em casa, pois minha professora também morava no sítio. Mais tarde me transferi para Rosário e fiz o ginasial, adiante mudei para Porto Alegre, onde cursei o clássico e a faculdade.

"A literatura surgiu em minha vida na época em que ainda morava em Rosário. Minha infância foi marcada pela poesia popular, quadrinhas e versos de polca entoados durante os bailes campeiros. Ritmos típicos do meio rural gaúcho. É um momento especial, onde as mulheres tiram os homens para dançar e aí se cantam versos, o par diz uma quadrinha um para o outro, começando pelo rapaz e respondida pela moça. Também me lembro dos "causos" contados pelos mais velhos na cozinha, ao redor do fogareiro. Essas narrativas são um substrato da minha literatura."

Mais adiante tive contato com livros e comecei a escrever. Em 1958 publiquei meu primeiro poema, num jornal de Rosário. Isto foi muito importante para o início de minha carreira. A partir dos estímulos recebidos de amigos continuei a escrever poemas regionalistas, que marcam até hoje meu estilo. Não me desvinculei desta linguagem rural. Claro que depois experimentei outras tendências, até chegar na poesia negra, na medida em que me conscientizava. Esta consciência chegou bem tarde.

ENCONTREI MINHAS ORIGENS

Encontrei minhas origens
em velhos arquivos
....... livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras
...... cantos
em furiosos tambores
....... ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei

Oliveira Silveira
Roteiro dos Tantãs



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Portal – Era possível desenvolver uma consciência racial no interior de um estado como o Rio Grande do Sul?

Oliveira Silveira – Na escola éramos e ainda somos muito mal informados sobre esses assuntos, ainda mais no campo. Mesmo em Rosário não cheguei a tomar consciência de minha condição de negro. Isto aconteceu apenas em Porto Alegre, quando entrei na faculdade. Por aí pode-se ver a força da discriminação e do racismo em nosso país. De certa forma foi a literatura que me iniciou nesse caminho. Através da leitura fui as poucos tomando contato com textos importantes como Orfeu Negro e a antologia organizada por Senghor, entre outros. Eles foram o estopim de meu despertar. A leitura deste material e meu envolvimento na política estudantil ampliaram meus horizontes.

Portal – Era difícil, portanto, construir uma identidade racial?

Oliveira Silveira - O grande problema para a tomada de consciência era que não haviam movimentos ou grupos atuantes. Da escola não se esperava muita coisa. Havia alguma informação sobre escravos e quase nada a respeito de quilombos e movimentos de resistência. No meu caso foi mais difícil pois vim para Porto Alegre como estudante e morava em república, sem nenhum contato com a comunidade negra daqui. Foi estudando a história do negro no Sul que descobri que há muito existiam grupos culturais, teatrais, políticos e outros, que movimentavam-se sem o conhecimento da maioria da sociedade.

Portal - Como o negro chegou no Rio Grande do Sul?

Oliveira Silveira - O Rio Grande de São Pedro do Sul, como se chamava antigamente, começou a ser oficialmente colonizado em 1737. Antes disso, desde o século anterior, o negro já circulava neste território. Os comerciantes portugueses de Laguna, em Santa Catarina, passavam por aqui a caminho de Sacramento, no Uruguai. Desnecessário salientar que os braços dessas comitivas eram de negros escravos. Portanto, desde o século 17 esse chão já conhecia os pés da raça negra. Quando em 1725 uma frota chegou ao Rio Grande, atravessando as águas de São José do Norte, o negro já era uma presença constante.

Portal – E como era a escravidão aqui? Dizem que era mais branda...

Oliveira Silveira – A escravidão nestas terras foi muita violenta. Principalmente durante o ciclo das charqueadas, em Pelotas. Segundo Nicolau Brás, um viajante da época que relatava suas andanças, administrar as charqueadas era como administrar um estabelecimento penitenciário. Aqui também ocorreu a reação do escravo contra o sistema. Consta até a existência de quilombos. O mais comum, porém, era a fuga de negros para o Uruguai, que desde 1727 já era independente. Os uruguaios acolhiam os negros em fuga, claro que por interesse, e estes recebiam um tratamento considerado melhor. Os escravos, portanto, preferiam atravessar a fronteira em busca de um território mais seguro. Existem importantes registros de historiadores como Moacir Flores e Solimar Oliveira Lima, com seu livro "Triste Pampa", além do excepcional trabalho de Cláudio Moreira Bento, que conta a história da presença do negro no Sul do século 17 até 1975! Nestas obras percebemos claramente que a escravidão era violenta. Talvez nas estâncias, pelo tipo de atividade desenvolvida e pelo fato das relações entre donos e escravos ser diferente, fosse "menos" violenta, até pela própria natureza. O fato é que "escravidão é escravidão", e não é boa em nenhum lugar, muito menos aqui. Esta história de escravidão branda é balela.

Portal – Então até aqui no Rio Grande do Sul existiram quilombos?

Oliveira Silveira - Existiram quilombos aqui sim! Pesquisadores como Eusébio Assunção, Solimar Oliveira Lima e Guilhermino César, apontam estes núcleos de resistência nas cercanias de Pelotas, Santana do Livramento e Rio Pardo, entre outras localidades. Infelizmente hoje não temos muitos registros de remanescentes. Existem algumas comunidades estabelecidas ao longo da história que estão sendo mapeadas. Este trabalho já foi executado no norte do estado, resta a parte sul, a mais importante. É uma pesquisa fundamental, pois a partir daí poderemos dar início a processos de reparação e de cobrança da dívida social.

Portal – E estas comunidades, preservaram suas características culturais, como a religião, por exemplo?

Oliveira Silveira – Certamente. Dizem os estudiosos que temos peculiaridades nos cultos africanos daqui que não são encontradas em outras partes do país. Temos duas grandes vertentes: uma definida como Angola Conguense e outra Yorubá ou Gegê Nagô, influenciada pela Nigéria e em menor escala pelo Benin. A presença destas religiões é ostensiva em todo o estado. Porém, acredito que esteja ameaçada. Há uma invasão de pessoas de fora da comunidade que ingressam nesses cultos com interesses puramente comerciais. Ao apropriarem-se do conhecimento, descaracterizam-no e iniciam "negócios" nos países do cone sul. Escrevi um artigo onde alertava a comunidade da necessidade de se criar uma resistência cultural a esses invasores. Os negros cultores destas religiões, que ainda mantém a autenticidade em suas atitudes e moradia, devem ser protegidos desta ameaça.

Treze de Maio

Treze de maio traição,
liberdade sem asas
e fome sem pão


Liberdade de asas quebradas
como
........ este verso.

Liberdade asa sem corpo:
sufoca no ar,
se afoga no mar.

Treze de maio – já dia 14
o Y da encruzilhada:
seguir
banzar
voltar?

Treze de maio – já dia 14
a resposta gritante:
pedir
servir
calar.

Os brancos não fizeram mais
que meia obrigação

O que fomos de adubo
o que fomos de sola
o que fomos de burros cargueiros
o que fomos de resto
o que fomos de pasto
senzala porão e chiqueiro

nem com pergaminho
nem pena de ninho
nem cofre de couro
nem com lei de ouro.

O que fomos de seiva
.......................de base
..................... de Atlas
o que fomos de vida
........................e luz
chama negra em treva branca
.......................quem sabe só com isto:

que o que temos nós lutamos
para sobreviver
e também somos esta pátria
em nós ela está plantada
nela crispamos raízes
de enxerto mas sentimos
e mutuamente arraigamos
....quem sabe só com isto:

que ela é nossa também, sem favor,
e sem pedir respiramos seu ar
....a largos narizes livres
bebemos à vontade de suas fontes
... a grossas beiçadas fartas
tapamos-destapamos horizontes
....com a persiana graúda das pálpebras
escutamos seu baita coração
....com nosso ouvido musical
e com nossa mão gigante
batucamos no seu mapa
....quem sabe nem com isso

e então vamos rasgar
a máscara do treze
para arrancar a dívida real
com nossas próprias mãos.

Oliveira Silveira
Banzo - Saudade Negra


MOVIMENTO NEGRO

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Primeiro ato evocativo de 20 de novembro realizado em 1971 pelo Grupo Palmares, em Porto Alegre

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"Há pessoas que imaginam que o Grupo Palmares tenha chegado ao 20 de Novembro através da obra de Décio Freitas, historiador branco que escreveu "Palmares, A Guerra dos Escravos", livro que teve o mérito de pesquisar mais a fundo a vida de Zumbi. O fato é que quando decidimos pela data, não conhecíamos nem Décio Freitas nem sua obra, ele a havia editado no Uruguai, durante o exílio, em agosto de 1971. A decisão de nosso grupo, portanto, é anterior a publicação de seu livro."


Portal – A instituição do 20 de Novembro como "Dia Nacional da Consciência Negra" partiu de vocês, negros gaúchos. Como surgiu essa idéia?

Oliveira Silveira – O 20 de novembro começou a ser delineado em encontros informais na Rua dos Andradas, aqui em Porto Alegre. Estávamos em 1971. Reuníamo-nos e falávamos muito a respeito do 13 de maio, do fato desta data não ter um significado maior para a comunidade. A partir desta constatação comecei a procurar outras datas que fossem mais significativas para o movimento. Comecei a estudar a fundo a história do negro e constatei que a passagem mais marcante era o Quilombo dos Palmares. Como não haviam datas do início do quilombo, tampouco do nascimento de seus líderes, optei pelo 20 de novembro. Colhi esta informação numa publicação da Editora Abril dedicada a Zumbi, que dava esta data como a de seu assassinato, em 1665. Por ser uma revista, não se apresentava como fonte segura. Resolvi pesquisar um pouco mais, como forma de garantia. mais adiante, no livro "Quilombo dos Palmares", de Edson Carneiro, a data se repetia. Considerei esta fonte segura, pela importância do autor. Além disto, tive acesso a um livro português que transcrevia cartas da época, numa delas era relatada a morte de zumbi, em 20 de novembro de 1665. A partir de então colocamos em ação nossas propostas. Batizamos o grupo de Palmares e registramos seu estatuto, em julho. No dia 20 de novembro do mesmo ano (1971), evocamos pela primeira vez o "Dia Nacional da Consciência Negra", na sede do Clube Marcílio Dias.

Portal – O racismo no sul é mais forte? Ouvi comentários, por exemplo, que negros não entravam no Centro de Tradições Gaúchas. É verdade?

Oliveira Silveira – Este é um caso emblemático. O Centro de Tradições Gaúchas foi criado na década de 40. O modelo era o da estância tradicional do Rio Grande. Uma fazenda de criação de gado, com patrão, capataz e peões. Foi um sucesso, e por iniciativa de tradicionalistas brancos, espalharam-se por todo país. Com o tempo caracterizaram-se como sociedades recreativas, com pretensões culturais. A verdade é que quando os negros aproximavam-se dos Centros eram rechaçados. Foram realmente excluídos.

Por reação, surgiram Centros exclusivos de negros! Isto mesmo, Centros de Tradições Gaúchas criados e frequentados por negros! O mais antigo deles é o "Lanceiros de Canabarro", que fica na cidade de Alegrete.

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A figura ilustra um "Lanceiro Negro", na Revolução Farroupilha (1835 - 1845) no Rio Grande do Sul

"O racismo está presente no Sul, bem como no resto do país, e seus efeitos são similares. Talvez aqui seja mais evidente, afinal a quantidade de negros é bem inferior a de descendentes de europeus. O fato é que o racismo no Rio Grande do Sul tem as mesmas características históricas de todo Brasil."

CULTURA E RESISTÊNCIA

Cantar Charqueada
Até eu cantei charqueada
chorando a sorte do boi.

Mas descobri que meu canto
tem raízes noutro campo:
por trás das cancelas mudas,
por trás das facas agudas.

Meu canto é uma carne escura
charqueada a relho na nalga;
é figura seminua
junto às gamelas de salga.

Carne escura exposta ao vento
dos varais do saladeiro
exposta viva ao sol quente
e suas facas carneadeiras.

Carne que se compra e vende
e de bem longe se importa
se salga, seca e só perde
quando já é carne morta

E meu canto é dessa carne
que não é minha e me dói
sangrando no sol da tarde
de um tempo que enfim se foi

Cabe a mim cantar charqueada
chorando a sorte do boi?

Oliveira Silveira
Pêlo Escuro


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Portal – E como o movimento negro gaúcho se mobilizou na política e cultura ao longo da história?

Oliveira Silveira – Podemos começar em 1892 com a fundação do jornal "O Exemplo", dedicado a questões negras, onde um dos destaques eram os artigos de Esperidião Calixto , que mostravam um alto grau de consciência racial. Calixto foi um infatigável militante na virada do século. O jornal existiu até 1930, foram 37 anos! Um marco na imprensa negra brasileira.

Outro foco de resistência é o Clube Floresta, que já conta com 129 anos. O Floresta fez história. Na década de 20 contava com o Centro Cívico José do Patrocínio, que fomentava atividades culturais, incluindo teatro.

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Em Rio Grande, por volta de 1932, ocorreram sessões da Frente Negra Brasileira, um importante movimento surgido em São Paulo no ano anterior.

Consta também a existência da União dos Homens de Cor, comprovada pelos estatutos da entidade encontrados em Osório.

Culturalmente, podemos destacar o Kikumbi no litoral e a congada "Terno de Maçambique" realizada em Osório, tradicional desde o século 19 e atuante até os dias atuais.

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Na Porto Alegre do início do século 20 havia uma grande atividade cultural negra que os cronistas chamavam genericamente de "batuque". É evidente que este termo encobria manifestações distintas como jongo, semba, capoeira e o próprio samba.

As Escolas de Samba são uma decorrência dos Blocos que surgiram inicialmente em Pelotas, berço da primeira escola, a "Academia de Samba Praiana".

É um assunto muito extenso...

Portal – Especificamente, após a criação do Grupo Palmares em 1971, como está o movimento gaúcho?

Oliveira Silveira – Depois de Palmares temos outras experiências. Uma das mais significativas foi a criação da "TIÇÃO", com três edições, duas como revista e uma como jornal, entre 1977 e 1980. A seguir vem a formação do núcleo local do MNU – Movimento Negro Unificado, que a partir de um certo momento, incorporou-se ao Grupo Palmares. A partir de 80 surgiu o "IAIA DUDU", um grupo artístico de dança e teatro, criado pela atriz Vera Lopes e por Maria Conceição Fontoura. Outro grupo importante é o AFROSUL , que atua na área de dança e música, há mais de 20 anos. Destaco também o "MARIA MULHER", criado em 1987, que é um dos mais atuantes, reunindo trabalhos sociais e culturais de mulheres negras.

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Portal – E o Projeto "Cabobu"?

Oliveira Silveira - É um festival cultural em Pelotas, com música, palestras e oficinas alusivas ao "Sopapo", um grande tambor que estabelece um diferencial entre o samba do sul e o carioca. Há registros que afirmam que este instrumento exista desde 1826! O idealizador deste evento é Giba Giba (Gilberto Amaro do Nascimento), que conta com a colaboração de Cacaio, Boto e Bucha, tradicionais percussionistas de Pelotas. A festa costuma atrair personalidades como Naná Vasconcelos, Chico César e grupos musicais de todo o estado.

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"Minha Pelotas Princesinha do Sul, onde negro com branco não faz misturada"
Solano Trindade, que residiu em Pelotas entre 1939 e 1941.

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Portal – Conte-nos um pouco sobre a literatura feita por negros em seu estado.

Oliveira Silveira – Ela inicia-se no século 19 e um fato dos mais significativos foi a fundação da Sociedade "Parthenum Literário", que influenciou a cultura e a vida política no Rio Grande do Sul. Nesta sociedade havia um negro chamado Luís da Motta, que publicou um livro de poemas e peças de teatro publicadas no jornal "O Exemplo", que reunia outras poetas negros como Alfredo de Souza e Aurélio de Bittencourt. No início do século 20 aparecem outros nomes. O mais importante foi Paulino Azurenha, que além de escritor foi um dos fundadores do "Correio do Povo". Atualmente podemos contar com nomes de peso como Paulo Ricardo de Morais, Ronald Augusto, Jorge Fróes e Maria Helena Vargas, uma poetisa ficcionista muito interessante, entre outros. Hoje a literatura negra é uma realidade no Rio Grande do Sul. Os autores estão presentes.

Portal – Incluindo o senhor...

Oliveira Silveira – Oliveira Silveira, a seu dispor...

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Entrevista realizada em janeiro de 2001 na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. Repórter e fotos: Jader Nicolau Jr. Assessoria: Nina Porto. Edição: Milton César Nicolau

20 de dezembro de 2006

OLIVEIRA SILVEIRA: UMA ENTREVISTA

Oliveira Silveira: Uma entrevista
Charles H. Rowell, Oliveira Silveira
Callaloo, Vol. 18, No. 4, Literatura Afro-Brasileira: Um Numero Especial (Autumn, 1995), pp. 983-984

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Journal Information for Callaloo
Journal information provided by The Johns Hopkins University Press - JSTOR has partnered with Project MUSE® to include links to the full text of recent articles in Callaloo

http://links.jstor.org

OLIVEIRA SILVEIRA – NO ÍNDICE DE AUTORES DO LITERAFRO

www.letras.ufmg.br/literafro

LITERAFRO – Portal da Literatura Afro-brasileira.

Objetivo: divulgar e estimular a pesquisa e a reflexão a respeito da produção literária dos brasileiros afro-descendentes. Lugar rizomático, elo e ponto de encontro. Mas, também, ambiente lacunar, feito de presenças e ausências, que adquire sentido pelo que apresenta e pelo que ainda está por vir e apresentar. Espaço em construção, aberto sempre a visitas e intervenções.

Eduardo de Assis Duarte
Coordenador do Projeto
Eliana Amarante de Mendonça Mendes
Diretora da FALE-UFMG

*********************
Literatura e Afro-descendência
por Eduardo de Assis Duarte

"Não existe, na aparência,
diferença essencial nos trabalhos
dos brasileiros brancos e de cor.
Mas justamente não passa de aparência,
que dissimula no fundo contrastes reais."

Roger Bastide

A conformação teórica da literatura “afro-brasileira” ou “afro-descendente” passa necessariamente pelo abalo da noção de uma identidade nacional una e coesa. E, também, pela descrença na infalibilidade dos critérios de consagração crítica presentes nos manuais que nos guiam pela história das letras aqui produzidas. Da mesma forma como constatamos não viver no país da harmonia e da cordialidade construídas sob o manto da pátria amada mãe gentil, percebemos, ao percorrer os caminhos de nossa historiografia literária, a existência de vazios e omissões que apontam para a recusa de muitas vozes, hoje esquecidas ou desqualificadas, quase todas oriundas das margens do tecido social.

Desde o período colonial, o trabalho dos afro-brasileiros se faz presente em praticamente todos os campos da atividade artística, mas nem sempre obtendo o reconhecimento devido. No caso da literatura, essa produção sofre, ao longo do tempo, impedimentos vários à sua divulgação, a começar pela própria materialização em livro. Quando não ficou inédita ou se perdeu nas prateleiras dos arquivos, circulou muitas vezes de forma restrita, em pequenas edições ou suportes alternativos. Em outros casos, existe o apagamento deliberado dos vínculos autorais e, mesmo, textuais, com a etnicidade africana ou com os modos e condições de existência dos afro-brasileiros, em função do processo de miscigenação branqueadora que perpassa a trajetória desta população.

Além disso, argumenta-se enfaticamente que critérios étnicos ou identitários não devem se sobrepor ao critério da nacionalidade: “nossa literatura é uma só” e, afinal, “somos todos brasileiros”... E mais: seríamos todos “um pouco” afro-descendentes... Muitos de nós teríamos, sim, “um pé na cozinha”, para lembrar a frase do presidente Fernando Henrique Cardoso. Daí, não haver sentido em demarcar especificidades de raça, etnia ou mesmo gênero, seguindo quase sempre “modismos importados” com o objetivo de fraturar o corpo de nossa tradição literária e da herança outorgada pelos mestres do passado e do presente.

O resultado de tais condicionamentos traduz-se na quase completa ausência de uma história ou mesmo de um corpus estabelecido e consolidado para a literatura afro-brasileira, tanto no passado quanto no presente, em virtude do número ainda insuficiente de estudos e pesquisas a respeito, apesar do crescente esforço nesta direção. A inexistência de uma recepção crítica volumosa e atualizada, bem como de debates regulares nos fóruns específicos da área de Letras, decorre desses fatores e também da ausência da disciplina “Literatura Afro-brasileira” (ou “Literatura Brasileira Afro-descendente”) nos currículos de graduação e pós-graduação da maioria dos cursos de Letras instalados no Brasil. Como conseqüência, mantém-se intacta a cortina de silêncio que leva ao desconhecimento público e vitima a maior parte dos escritores em questão.

E, como recorda Maria Nazareth Fonseca (2000), mesmo publicações que procuram tornar mais conhecida a produção literária dos afro-brasileiros, como, por exemplo, os Cadernos Negros, de São Paulo, que já possuem uma tradição e têm uma periodicidade comprovada, ficam fora do mercado editorial. Além disso, antologias, folhetos e jornais ligados ao Movimento Negro realizam um louvável esforço de divulgação, mas possuem uma circulação restrita, ao mesmo tempo em que se voltam preferencialmente para autoras e autores contemporâneos. Com isto, permanece intacto o processo de obliteração que deixa no limbo de nossa história literária a prosa e a poesia de inúmeros autores afro-brasileiros do passado.

Apesar desse conjunto de fatores desfavoráveis, há de se ressaltar que a historiografia literária brasileira vem passando, nas últimas décadas, por um vigoroso processo de revisão não apenas do corpus que constitui seu objeto de trabalho, como dos próprios métodos, processos e pressupostos teórico-críticos empregados na construção do edifício das letras nacionais. Tal revisão não ocorre, obviamente, de forma espontânea, mas motivada pela emergência de novos sujeitos sociais, que reivindicam a incorporação de territórios discursivos antes relegados ao silêncio ou, quando muito, às bordas do cânone cultural hegemônico.

No decorrer dos anos 80, a postura revisionista ensaia seus primeiros passos na academia pelas mãos do feminismo, bem como a partir das demandas oriundas do movimento negro e da fundação no Brasil de grupos como o Quilombhoje. Nesse contexto, destacam-se os trabalhos de Moema Parente Augel, Zilá Bernd, Domício Proença Filho, OLIVEIRA SILVEIRA, Oswaldo de Camargo, Luiza Lobo, Leda Martins e de membros do movimento negro, que, ao lado de brasilianistas contemporâneos, como David Brookshaw, dedicam-se ao resgate da escrita dos afro-descendentes.

Destaque-se ainda a precedência de trabalhos como os de Sílvio Romero, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Henrique L. Alves ou Edison Carneiro. A eles se juntam Roger Bastide, Raymond Sayers e Gregory Rabassa que, embora partindo de perspectivas e métodos distintos, debruçaram-se, ao longo do século XX, sobre esta produção. E, já naquele instante, aflorava o caráter polêmico inerente à colocação de mais um qualificativo às nossas letras: além de brasileira, essa literatura começava a postular-se ou ser designada como negra ou afro-brasileira. Desnecessário repetir que tal postura ainda hoje é motivo de resistências em diversos setores do campo intelectual. Domício Proença Filho (1988: 77-80) alerta para o “risco terminológico” implícito ao uso da expressão literatura negra, qual seja, o de “fazer o jogo do preconceito” ao atribuir a esses escritos um lugar “sutilmente distinto, sob a capa de aparente valorização.”

Reação semelhante perpassou também o território da chamada “escrita feminina”, conceito que ainda hoje suscita questionamentos, mesmo entre a crítica feminista e os movimentos de mulheres. A essa altura, pode-se adiantar que tal controvérsia decorre da tensão entre a pretendida igualdade de espaços ou oportunidades e o necessário respeito à diferença. Até mesmo o slogan “viva a diferença, com direitos iguais”, lançado a certa altura pelas feministas, aponta em seu viés algo utópico, para essa tensão, que marca o desenvolvimento das “políticas de identidade” (HALL, 1999). Ao reivindicar o respeito à diferença, tais políticas se expõem ao risco de alimentar a discriminação, conforme também postula em suas conclusões Antônio Flávio Pierucci (1999), a partir de pesquisa realizada entre o eleitorado conservador na cidade de São Paulo.

No campo das artes e da literatura em especial, é corriqueiro o argumento pelo qual elas não têm sexo, nem cor. O conservadorismo estético propugna a existência de uma arte sem adjetivos, portadora de uma essência do belo concebida universalmente. Sob esse prisma, vigoram os preceitos da arte pura, elevada e jamais contaminada pelas contingências ou pulsões da história. Uma arte cuja finalidade é não ter um fim para além de si mesma, como bem a define o idealismo kantiano. Todavia, no alvorecer do novo milênio, é o caso de se indagar a quem serve esse essencialismo. Não estará ele comprometido com o absolutismo de um pensamento que por séculos impôs outras essências tidas também como sublimes e absolutas, com a finalidade básica de perpetuar hierarquias e naturalizar a exclusão?

A nosso ver, a ideologia do purismo estético, ela sim, faz o jogo do preconceito, à medida que transforma em tabu as representações vinculadas às especificidades de gênero ou etnia e as exclui sumariamente da “verdadeira arte”, porque “maculadas” pela contingência histórica. Este purismo é, no fundo, um discurso repressor, que cala a voz dissonante desqualificando-a enquanto objeto artístico. É o caso de se indagar qual valor concede sustentação a valores estéticos enrijecidos por séculos de colonização ocidental. E não será difícil vislumbrar nesse quadro o mesmo etnocentrismo que um dia levou Hegel a excluir a África da humanidade.

Do outro lado do espectro crítico, ao contrário, vigora o olhar descentrado, que se fundamenta não apenas na pluralidade e na relatividade dos valores estéticos, aliás, como já defendiam as vanguardas históricas do século XX, mas vislumbra o cultural e o político também como valores da arte. Nesta perspectiva, a distinção de uma determinada literatura como integrante do segmento afro-descendente ganha pertinência ao apontar para um território cultural tradicionalmente posto à margem do reconhecimento crítico, e ao denunciar o caráter etnocêntrico de muitos dos valores adotados pela academia. Ao postular a adjetivação dos operadores oriundos da Teoria Estética, a crítica fundada no respeito à diversidade cultural indica explicitamente o locus delimitado e específico a partir do qual foram gerados e, mais tarde, impostos, conceitos pretensamente universais – qual seja, o lugar da cultura branca, masculina, ocidental e cristã, de onde provêm os fundamentos que ainda hoje sustentam o cânone e, mesmo, concepções estreitas de literatura, arte e civilização.

A afro-descendência, uma questão

No caso específico de nossa produção letrada, outras barreiras nada desprezíveis colocam-se frente à tarefa de tornar mais visível o corpus da afro-brasilidade. Tais empecilhos vão desde a estigmatização dos elementos oriundos da memória cultural africana e o apagamento deliberado da história dos vencidos até ao modo explicitamente construído e não essencialista com que se apresentam as identidades culturais.

Ao lado disso, acrescente-se nossa constituição híbrida de povo miscigenado, onde linhas e fronteiras de cor perdem muitas vezes qualquer eficácia. As relações inter-raciais e interétnicas constituem fenômeno concernente à própria formação do Brasil enquanto país. Ao longo de nossa história, o fenômeno da mistura de raças e culturas recebeu distintos tratamentos, indo da idealização romântica de uma terra sem conflitos ao mito da democracia racial, por um lado; e da condenação racialista típica do século XIX ao fundamentalismo de muitos segmentos contemporâneos, que rejeitam a mestiçagem e defendem a existência de uma possível essência racial negra, por outro.

Condenada por Nina Rodrigues, Paulo Prado e demais vozes atreladas ao pensamento positivista e darwinista, entre outros, ao mesmo tempo em que celebrada por Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e tantos mais, a mestiçagem é, no entanto, um dado inexorável de nossa constituição enquanto povo. Somos um país marcado pela hibridez e este é um fato absolutamente explícito em nosso cotidiano e óbvio em sua magnitude até mesmo biológica, comprovada recentemente através da extensa pesquisa do DNA do brasileiro levada a cabo por cientistas do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG.1

Todavia, a concepção de um paraíso híbrido localizado ao sul do Equador dissimula em grande medida o rebaixamento dos afro-descendentes. Como sabemos, a discriminação pela cor da pele e pela presença de traços fenotípicos africanos dá-se de forma mais ou menos sutil, dependendo da situação. A doxa da democracia racial constrói para o Brasil a imagem de um país mestiço – nem preto, nem branco, muito antes pelo contrário –, fruto da mistura harmoniosa das raças que se juntaram para a formação do nosso povo (SCHWARCZ, 1993, 1998). E se a mestiçagem transforma-se em marca da identidade nacional, essa construção traz implícita consigo a acomodação diluidora que orienta em grande medida a leitura das relações interétnicas no Brasil, sem que haja um enfrentamento dos conflitos que esculpem a face invisível do mito que nos quer explicar (FONSECA, 2000).

A título de ilustração, recorro ao depoimento de duas intelectuais contemporâneas afro-descendentes, dados num intervalo de poucos meses, a um mesmo periódico cultural. Refiro-me às entrevistas de Marilene Felinto e Suely Carneiro à revista Caros Amigos. Indagada a respeito de seu posicionamento no campo identitário, afirmou a autora de As mulheres de Tejucopapo:

Até porque nem me acho muito nordestina mais, me acho tão misturada, não me acho nada. Nem nordestina, nem negra, nem branca, não sou nada, nada exatamente. Não levanto nenhuma bandeira, não milito no movimento negro, não militaria, não choramingo pelo Nordeste, muito pelo contrário. (Felinto: 2001).

É preciso destacar, inicialmente, que a recusa explícita à militância deixa claro o nexo entre ser e agir, ou seja, entre vinculação identitária e compromisso existencial e político. Enquanto configuração discursiva, somos aquilo que dizemos ser, somos as idéias que defendemos. Marilene Felinto explicita o leque de identificações em trânsito (HALL, 1999) como alternativa que refuta o enraizamento e a afro-descendência. Por outro lado, constata-se a reedição, em seu discurso, de uma postura que possui datação histórica e que termina por deflagrar a aceitação tácita das normas raciais impostas socialmente, tal como ocorreu com inúmeros outros afro-brasileiros ilustres do passado. Essa opção implica a recusa a qualquer pertencimento, especialmente se isto significar pertencer a um segmento majoritariamente discriminado.

Já Sueli Carneiro, dirigente do GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra –, indagada a respeito do conceito, assim se posicionou:

A expressão afro-descendente resgata toda essa descendência negra que se dilui nas miscigenações, desde a primeira miscigenação que foi o estupro colonial, até as subseqüentes, produto da ideologia da democracia racial. A expressão resgata a negritude de todo esse contingente de pessoas que buscam se afastar de sua identidade negra, mas que têm o negro profundamente inscrito no corpo e na cultura. (Carneiro: 2000).

A fala explicitamente política articula etnicidade, cultura e condição social. Sem obliterar a questão da cor, apela à re-construção da memória ancestral para com ela alimentar o orgulho étnico e o próprio estatuto identitário afro-brasileiro. As duas citações deixam patente que a atitude assumida pelo sujeito dessa construção não se dá de forma natural ou automática, mas a partir de um processo de identificação a determinadas marcas culturais, escolhidas como origem no âmbito de uma ancestralidade eleita como opção.2 Posição semelhante pode-se depreender das colocações de Zilá Bernd (1987), que configura a literatura negra como aquela produzida por um sujeito de enunciação que se afirma e se quer negro.

Nesta perspectiva, a assunção da afro-descendência funcionaria como um antídoto ao processo de alienação que afeta indivíduos de “pele negra e máscaras brancas” (FANON, 1983). Tais sujeitos edificam para si a imagem de brancos e se tornam eles próprios agentes do preconceito. A celebração de vínculos, inclusive afetivos, com uma africanidade em parte resgatada e em parte construída a posteriori, no âmbito da diáspora negra no Brasil, confere à produção cultural comprometida com esse processo um caráter de resistência política ao rebaixamento social do qual é vítima esta população. Ao questionar o mito da conciliação dos contrários promovido pela ideologia da democracia racial, tal produção coloca-se no extremo oposto do movimento histórico de diluição miscigenadora aludido por Suely Carneiro.

Vinculado à mestiçagem e aos estigmas provindos da escravidão, o branqueamento, enquanto negação da afro-descendência, tem nos legado escritores que produzem uma literatura esquecida da questão racial e das desigualdades dela decorrentes. Um exemplo instigante talvez seja Mário de Andrade, mulato que, como tantos outros, buscou a ocultação da origem, tanto socialmente, quanto em alguns de seus escritos. Em “Poemas da Negra” (1929), o eu lírico exalta inicialmente “a escureza suave / que vem de você, / que se dissolve em mim”, para em seguida declarar “ôh meu amor, / Nós não somos iguais.” (1976, 222-3) Já em Macunaíma, texto que aparentemente celebra a mestiçagem, a questão se agrava. Há passagens em que o discurso de rebaixamento do negro fala pela voz do narrador, como na famosa cena do branqueamento do herói, em que a água mágica “lavara o pretume” da pele... Na seqüência, o irmão se jogou sofregamente na mesma água, mas esta já estava “muito suja da negrura do herói” e o personagem “só conseguiu ficar da cor do bronze novo”. O narrador afirma que Macunaíma “teve dó” e assim “consolou” o irmão: “-olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz.” (Andrade: 1978, 34)

O texto fala por si e dispensa maiores interpretações. Mas deixa visível o quanto a idéia de branqueamento implica em denegação do ser e do existir negro num país de racismo camuflado como o Brasil. Apesar das concessões ao discurso racial hegemônico, Mário de Andrade deixou considerável acervo de estudos e pesquisas sobre a oralidade de origem africana presente em nossa cultura popular, além de belas páginas sobre a arte da “mulataria” no século XVIII, em especial, sobre Aleijadinho. Nesses momentos, a afro-descendência assume a forma de retorno do recalcado e passa a dirigir a sensibilidade e o olhar do sujeito mestiço.

Outro caso polêmico é o de Machado de Assis, acusado por muitos de extirpar de suas narrativas o mundo do trabalho, em especial, o do trabalho escravo, bem como de ter se omitido em relação à luta pela emancipação dos negros. De origem humilde, mulato cujos avós paternos conheceram a senzala, o escritor teria ascendido ao panteão da glória acadêmica no mesmo ritmo em que se afastava de sua etnicidade de origem. A questão é controversa e possui várias facetas. Por um lado, a explicitação de um proselitismo abolicionista (ou de qualquer outra natureza) estaria em contradição direta com o projeto literário machadiano, marcado pela ironia e por sofisticados deslizamentos de sentido. Por outro, seria correto afirmar que a condição afro-descendente está ausente de seus escritos?

Por certo que não. Em sua ficção, Machado focaliza preponderantemente as elites, universo de onde provinha certamente o grosso de seu público leitor. Mas, além de não abrigar estereótipos racistas quanto à representação dos afro-brasileiros – prática, aliás, corriqueira em muitos escritores de seu tempo, inclusive abolicionistas como Aluísio Azevedo – em nenhum momento constrói o elogio dos senhores, ao contrário. Um personagem como Brás Cubas, por exemplo, ressalta a todo instante o destronamento crítico que escritor põe em prática. E se verificarmos Bentinho, Palha, os irmãos Pedro e Paulo, ou o Conselheiro Ayres, veremos que nenhum deles escapa à lâmina ferina do escritor.

E há, ainda, o Machado de Assis homem de imprensa, protegido muitas vezes pelo pseudônimo e a escrever para um público mais amplo. Magalhães Júnior (1957) afirma, ter sido o autor acionista da Gazeta de Notícias, um dos jornais mais lidos na década de 1880 e que continha, em todas as edições, matérias contra a escravidão. A leitura das crônicas machadianas revela o cidadão empenhado em denunciar a crueldade do sistema e a hipocrisia de escravocratas recém-convertidos ao abolicionismo. Mais: tais escritos valem-se muitas vezes dos recursos da narrativa de ficção para fazer a sátira dos senhores. Noutros momentos, clamam à filantropia dos brancos em prol do fundo de emancipação, numa demonstração inequívoca de que defendia uma libertação pacífica e sem maiores traumas para o país.

À época do apogeu de Machado, a denúncia do preconceito e do processo de hierarquização inerente ao branqueamento encontra acolhida explícita na ficção de Lima Barreto. O autor repudia o “novo” estatuto dos remanescentes de escravos e demonstra uma compreensão correta do processo histórico ao articular etnicidade e condição sócio-econômica: “negro ou mulato, como queiram”, costumava dizer de si mesmo como forma de recusar o branqueamento. Pobre e suburbano, via a ascensão social bloqueada não apenas pela linha de cor, mas também pela exploração econômica. Como exemplo, pode-se destacar, entre tantas, a cena do desfile militar em Recordações do escrivão Isaías Caminha, na qual o narrador, ele próprio um mestiço, observa a arrogância dos oficiais, em contraste com as figuras trôpegas, entre negras e mulatas, dos desajeitados componentes da tropa: “os oficiais pareciam-me de um país e as praças de outro. Era como se fosse um batalhão de cipaios ou de atiradores senegalezes” (Barreto, 1993: 68).3

A partir destas amostras, tem-se a dimensão da diversidade (e das contradições) que marcam a presença afro em nossa literatura. Ela surge enquanto etnicidade, isto é, fora da órbita da natureza e enquanto assunção de um determinado pertencimento identitário, para além dos condicionantes fenotípicos. Assim, cabe ao estudo deste conjunto heterogêneo de autores verificar tanto a afro-descendência celebrada, assumida ou apenas admitida (às vezes de modo envergonhado), quanto aquela outra, subalternizada e reprimida socialmente, recalcada ou mesmo explicitamente repudiada. A pesquisa não pode se reduzir a simplesmente verificar a cor da pele do escritor, mas deve investigar, em seus textos, as marcas discursivas que indicam (ou não) o estabelecimento de elos com esse contingente de história e cultura.


A constituição da literatura afro-brasileira:
historicidade, identidade, gênero


Em seu livro A poesia afro-brasileira, de 1943, Roger Bastide revisita nossa tradição letrada partindo de uma perspectiva étnica, como o próprio título anuncia, para destacar as obras dos negros e mestiços. Na Introdução do volume, chama a atenção para a especificidade desta poesia, invocando como pressuposto não apenas a diferença cultural, mas também as contingências históricas inerentes à presença dos africanos e seus descendentes no Brasil:

Talvez não seja impunemente que se traz correndo nas veias sangue da África e, com o sangue, pedaços de florestas ou de descampados, a música, longínqua do tam-tam ou do ritmo surdo da marcha das tropas, reminiscências de magias e de danças, gris-gris e amuletos de madeira. Talvez não seja impunemente que se tenha passado pela senzala e dela se tenha saído pelo esforço mais que heróico ou pela bondade do senhor branco, para subir um pouco na escala social. (BASTIDE, 1943: 8).

Embalado por esse cauteloso “talvez”, Bastide reconhece a memória cultural africana, bem como a memória do trauma do aprisionamento e da escravidão como fatores estruturantes de uma expressão que só “na aparência” não é diferente da produzida pelos brancos. Entre o sangue/raça e a memória/cultura dos submetidos, vê a memória do sangue e da submissão como alimento da diferença. Recusa, desta forma, rebaixar os afro-brasileiros à mesma tabula rasa com que os primeiros colonizadores portugueses, sobretudo os jesuítas, reduziram os índios. Em seu ponto de vista, algo resiste nos afro-descendentes que sobrevive à assimilação e os faz escaparem do etnocídio. Tal processo de superação histórica leva-os a aprender a língua dos senhores sem esquecer formas, narrativas e crenças do passado livre. E acrescenta: “deve ficar na alma secreta um halo desta África” (idem). Deste modo, mas sem deixar de fora o movimento pendular entre as forças poderosas da imitação e da originalidade, volta ao século XVIII em busca dos começos da poesia afro- brasileira.

Bastide apóia-se em Sílvio Romero para entronizar o mulato Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), autor da Viola de Lereno, como o “primeiro poeta afro-brasileiro”, endossando suas afirmações quanto à circulação das trovas e cantigas de Lereno junto às camadas populares (1943: 22). Passa em seguida ao árcade Silva Alvarenga (1730-1814) para expor seu branqueamento, fruto da educação coimbrã. Afirma predominar a mimese das formas européias, mas não desiste de procurar “sob a melodia das flautas o que subsiste do ritmo africano sufocado” (1943: 25).

Ao estudar o período romântico, destaca Teixeira e Souza (1812-1861), Silva Rabelo (1826-1864), Tobias Barreto (1839-1889) e Gonçalves Dias (1823-1864) como autores mestiços, porém marcados, em diferentes níveis, pela imitação dos padrões europeus. Bastide acusa o branqueamento que, em Teixeira e Souza, leva à exclusão do escravo e à impossibilidade de “um lirismo puramente africano” (1943: 40); em Silva Rabelo, apesar do protesto contra a escravidão, leva ao “embranquecimento da desgraça afro-brasileira” (1943: 46); em Tobias Barreto, à união das raças em favor da pátria; em Gonçalves Dias, leva ao tema africano, mas sob o peso de uma “sensibilidade ariana” (1943: 67); e, posteriormente, também em Gonçalves Crespo, brasileiro residente em Portugal, a assunção dos valores europeus conduz à construção de uma descendência idealizada e até “nostálgica da cor branca” (1943: 86). O crítico conclui o tópico declarando que o romantismo “retardou a eclosão da poesia afro-brasileira.” (1943: 80)

A exceção ficaria de Luiz Gama (1830-1882), filho da célebre Luiza Mahin com um fidalgo português e vendido pelo próprio pai. Embora destacando a primazia da perspectiva autoral, calcada no ponto de vista dos submetidos, Bastide menospreza o lirismo do “Orfeu de Carapinha”, por ter, segundo ele, “fracassado” na busca de uma especificidade poética africana. Mas valoriza a sátira do autor, voltada para a crítica da imitação dos brancos e para a valorização dos traços culturais e fenotípicos oriundos do continente negro.

Já a pesquisa de Gregory Rabassa (1965), na seqüência do estudo de Raymond Sayers (1958), deixa em segundo plano a questão da autoria. Ambos os trabalhos, concebidos originalmente como teses de doutorado para universidades norte-americanas, ocupam-se do negro mais como figura representada do que como sujeito de enunciação. Sayers enfoca a narrativa pré-abolicionista, enquanto Rabassa enfatiza a produção posterior a 1888, indo até meados do século XX.

David Brookshaw (1983), por sua vez, ocupa-se tanto da representação quanto da autoria. Seu estudo estabelece três categorias de escritores: os da tradição erudita, marcada basicamente pelo recalque da condição afro-brasileira; os da tradição popular fundada no humor e na assunção da africanidade; e aqueles vinculados à tradição do protesto e da sátira. No primeiro caso, figurariam como nomes fundantes Machado de Assis (1839-1908), Tobias Barreto (1839-1889) e Cruz e Souza (1861-1898). Quanto ao segundo grupo, Brookshaw retoma Bastide e Romero para colocar Domingos Caldas Barbosa como iniciador de uma tradição que mescla poesia e música popular. E faz o mesmo ao destacar Luiz Gama como fundador da verdadeira poesia afro-brasileira, voltada não apenas para a celebração da cor e dos elementos culturais oriundos de África, mas, sobretudo, para a crítica feroz ao branqueamento e aos valores sociais impostos aos remanescentes de escravos.

Idêntica postura assumem Zilá Bernd (1988; 1992) e Domício Proença Filho (1988: 77-109). Ambos enfatizam Luiz Gama como “discurso fundador” e “pioneiro da atitude compromissada” com os valores da negritude. Segundo Proença Filho, Gama foi o primeiro poeta “a falar em versos do amor por uma negra” (1988: 94). Caracterizando esta literatura como “um modo negro de ver e sentir o mundo, transmitido por um discurso caracterizado, seja no nível da escolha lexical, seja no nível dos símbolos utilizados, pelo desejo de resgatar uma memória negra esquecida”, Zilá Bernd (1992: 13) destaca as Primeiras trovas burlescas de Luiz Gama, publicado em 1859, como “um verdadeiro divisor de águas na Literatura Brasileira, na medida em que funda uma linha de indagação sobre a identidade, a qual será trilhada até hoje pela poesia negra do Brasil.” (1992: 17).

Em seu livro O negro escrito, de 1987, Oswaldo de Camargo, além dos nomes já citados, indica outros precursores. Após referendar Domingos Caldas Barbosa como “o primeiro poeta mulato do Brasil”, indica Evaristo da Veiga (1799-1837) e José da Natividade Saldanha (1795-1830) como mestiços que não assumiram literariamente a afro-descendência. Mais adiante, distingue Francisco de Paula Brito (1809-1861) como “um dos precursores do conto no Brasil”, além de “iniciador do movimento editorial” e “precursor, também, da imprensa negra” (1987: 41-2). No entanto, a “alta consciência da raça” só viria mais tarde, com Luiz Gama.

Como se pode notar, há um consenso entre os críticos citados, no que toca aos momentos fundantes da literatura afro-brasileira. Este percurso passa pelos poetas do século XVIII, chega aos primeiros românticos e deságua na poesia de Luiz Gama, colocado por todos como o Pai desta tradição. Além de ter sofrido a condição escrava, Gama assumiu seus vínculos étnicos e culturais, e vislumbrou sempre na literatura o gesto político necessário à intervenção no status quo.

Mesmo concordando com a inclusão dos autores acima indicados, é impossível não reconhecer o caráter gendrado – isto é, marcado por uma especificidade de gênero –, desta trajetória, que confere a ela uma tonalidade especificamente patriarcal. Com efeito, os estudos aqui resenhados corroboram o sentido geral de nossa história literária, sobretudo em seus começos, qual seja o de uma história basicamente masculina. A título de exemplo, invoque-se José de Alencar, entronizado por Afrânio Coutinho como o “patriarca do romance brasileiro”, fato que emoldura a quase total ausência de escritoras em nossa historiografia literária, nos períodos anteriores ao século XX.

Todavia, o momento presente propicia (e exige) a articulação da etnicidade com o gênero, a partir mesmo de uma compreensão da diferença cultural que os particulariza frente aos padrões hegemônicos, e dos condicionantes históricos que relegaram ambos os segmentos à submissão, apesar de em níveis distintos. Assim, uma vez operada tal articulação, abre-se a possibilidade de um suplemento à configuração teórica e histórica da literatura afro-brasileira. E esta operação suplementar aponta justamente para a inclusão das mulheres que, nos séculos XVIII e XIX, vencendo as barreiras impostas às “pessoas de cor” e ainda aquelas derivadas do pertencimento ao “sexo frágil”, lograram atingir a expressão letrada e até publicar.

Nesse novo contexto, avulta a africana Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, que chega ao Rio de Janeiro em 1725, aos 6 anos de idade. Segundo seu biógrafo, Luiz Mott (1993), foi colocada no ganho e prostituída na região das Minas Gerais, chegando a ser açoitada no Pelourinho de Mariana. Mais tarde, é considerada portadora de poderes paranormais, muda de vida, volta ao Rio de Janeiro e funda o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, onde passa a acolher ex-prostitutas. Além disso,

foi não apenas a primeira africana no Brasil, de que temos notícia, a conhecer os segredos da leitura, como também provavelmente a primeira escritora negra de toda a história, pois chegou a reunir centenas de páginas manuscritas de um edificante livro: Sagrada Teologia do Amor de Deus, Luz Brilhante das Almas Peregrinas, lastimavelmente queimado às vésperas de sua detenção [pela Inquisição], mas do qual restaram algumas folhas originais. (Mott, 1993: 8).

Na longa biografia, o autor refere-se ainda a outros escritos e à existência de quarenta cartas, plenas de poeticidade barroca, encontradas na Torre do Tombo nos dois volumes do processo aberto pelo Santo Ofício. Quanto ao manuscrito destruído, afirma ter sido finalizado em 1752. Curiosa coincidência: neste mesmo ano, outra desterrada, a brasileira Teresa Margarida da Silva e Orta, publicava com sucesso, em Lisboa, suas Máximas de virtude e formosura ou Aventuras de Diófanes, conforme se tornou conhecido a partir da segunda edição. A inclusão de ambas as autoras na Literatura Brasileira é polêmica. No caso de Teresa Margarida, pelos motivos exaustivamente debatidos. Já sobre Rosa Egipcíaca pesa o fato de não ser brasileira, nem ter, até o momento, seus escritos publicados e divulgados.

A pouca divulgação também impediu que a maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917) viesse a constar dos manuais clássicos de nossa historiografia literária. A escritora, num fato inédito naquela época para uma mulher humilde, mulata e bastarda, conseguiu, em 1847, ser aprovada em concurso público para a cadeira de Instrução Primária, tendo exercido o magistério ao longo de boa parte dos seus noventa e dois anos de vida. De acordo com Zahidé Lupinacci Muzart (2000: 264), Maria Firmina publica Úrsula, em 1859, sendo este o “primeiro romance abolicionista e um dos primeiros escritos por mulher brasileira”, tendo ainda colaborado em diversos jornais, inclusive com o romance-folhetim Gupeva, de 1861, e o conto “A escrava”, em 1887.

Muzart apóia-se na biografia elaborada por José Nascimento Morais Filho e em outros estudos, como de Luiza Lobo e Maria Lúcia de Barros Mott, para asseverar que “pela primeira vez o escravo negro tem voz e, pela memória, vai trazendo para o leitor uma África outra, um país de liberdade.” E destaca a personagem Mãe Suzana, cuja inserção vai dar o tom de inovação e ousadia de Úrsula frente às demais narrativas abolicionistas:

Mãe Suzana vai contar como era sua vida na África, entre sua gente, de como se deu a prisão pelos caçadores de escravos e de como sobreviveu à terrível viagem nos porões do navio. É mãe Suzana quem vai explicar a Túlio, alforriado pelo Cavaleiro, o sentido da verdadeira liberdade, que essa não seria nunca a de um alforriado num país racista. (MUZART, 2000: 266).

Desta forma, a contribuição de Luiz Mott, Zahydé Muzart e tantos pesquisadores empenhados no resgate de vozes esquecidas da nossa literatura vai, aos poucos, construindo um instigante suplemento a esta história. No caso, um suplemento de gênero, que desconstrói a narrativa eminentemente masculina até então em vigor. Note-se que, no mesmo ano em que Luiz Gama publicava suas Primeiras trovas burlescas, Maria Firmina dos Reis trazia a público Úrsula. Deste modo, se a Literatura Afro-brasileira tinha, em 1859, um de seus marcos fundadores, após a redescoberta de Úrsula, passa a ter dois... o que induz a pensar na existência não apenas de um Pai, mas também de uma Mãe... Tais anotações, ainda distantes e de qualquer conclusão, ressaltam a necessidade de permanentemente se revisitar e desconstruir a narrativa de nossa história literária.


Referências Bibliográficas

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19 de dezembro de 2006

PALAVRA DE NEGRO

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por Oliveira Silveira, no livro
Negro em Preto e Branco, de Irene Santos

Afora o trabalho braçal dos quatro séculos em que trabalho era sinônimo de negros construindo o Brasil para beneficiários de outras raças, etnias ou procedências nacionais, a imprensa, a literatura, outras artes e formas culturais demonstram eloqüentemente a participação negra na vida brasileira enquanto manifestação de seres pensantes, expressão de sensibilidade e ação por vontade própria.

A partir do século XVI (16 em arábico) o negro criou a liberdade de Palmares - estado, país, reino, república... - adentrando e ocupando nisso toda a centúria seguinte. E nesse mesmo XVII, os anos 1600 no calendário parcial dos cristãos, a oratura negra das letras de lundu, a literatura oral ou oralitura, como diz a afro-mineira Leda Martins, estavam bem presentes, com certeza. Já no setecentismo, o século XVII dos minérios, o maior brilho é do escultor, o artista Antônio Francisco Lisboa, o alejadinho. Na literatura e na música, já aparece o sangue negro em Caldas Barbosa e José Maurício, respectivamente.

No século XIX (19 em arábico), quando nasce verdadeiramente a literatura brasileira, o primeiro romancista é o negro Teixeira e Souza, mulato. E o primeiro editor nacional é um negro, o mulato Francisco de Paula Brito, justamente o precursor, também, da Imprensa Negra. Seu jornal, O Homem de Cor,1833, mudado para O Mulato ou o Homem de Cor. Tudo em lições de mestre Oswaldo de Camargo, escritor negro paulista, em o Negro Escrito , livro de 1988. Paula Brito, editor aina de A Marmota Fluminense, o seu jornalismo em ação. A pesquisa da jornalista negra Ana Fraga Magalhães Pinto para o mestrado em História na Universidade Nacional de Brasília, UNB, localiza novos títulos inclusive em 1833.

O maior escritor da época ou além dela, um polígrafo, senhor dos gêneros liteários e do estilo é o homem negro Machado de Assis. Mulato, negromestiço,negróide, ou misto afro... é tudo negro no Brasil. E tem Luiz Gama, Cruz e Souza - um continuum literário, artístico, cultural, em crescendo, impondo-se aos séculos XX e XXI. Sim, vinte e vinte e um.

Se ainda no século dezenove (XIX) José do Patrocínio era escritor, empresário e jornalista negro dono de jornais - Gazeta da Tarde , 1877-1887, e A cidade do Rio, 1887-1903- ou se o poeta Cruz e Souza tinha escritos abolicionistas ou simplesmente literários em jornais de Florianóplis , em Porto Alegre quem marca forte é o grupo do jornal O Exemplo. Cobrindo com interrupções e fases de o período 1892 a 1930, O Exemplo é iniciativa e organização de negros . Antecipa-se à importante imprensa negra paulista e paulistana: O Baluarte, Campinas,1903, A Pérola, São Paulo, 1911, O Menelick a seguir, O Clarim da Alvorada mais adiante.

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O Exemplo, exemplar, fo seguido por outros órgãos gaúchos como os pelotenses A Cruzada, 1905, e A Alvorada, 1907, ou A Revolta, 1925 em Bagé, A Navalha, 1931 em Santana do Livramento - informes de Marco Antônio Lírio de Melo, revista Porto e Vírgula nº29, novembro de 1996.

Em O Exemplo (mais vinculado ao meio negro nos primeiros tempos), do diretor inicial Arthur de Andrade à derradeira direção de Dario de Bittecourt, o grande destaque é para a visão, a coerência, o espírito crítico e combativo de Esperidião Calisto, um barbeiro jornalista muito politizado. E tem literatura, humor, informes sobre teatros e clubes como o Floresta Aurora.

Se a imprensa negra de São Paulo acelerou com O Menelick, O clarim de Alvorada, A Voz da Raça ( da Frente Negra Brasileira)) e seguiu em frente, e se, no Rio de Janeiro, Abdias do Nascimento e o Teatro Experimental do Negro lançaram o também histórico Quilombo, 1948-1950, com sucedãnios na cena carioca e fluminense (SINBA, Boletim do IPCN, na década de 70), no Rio Grande do Sul houve , parece um hiato a partir de 1930. ou nos faltam registros. Mas a partir dos anos 60 sabe-se de informativos de clubes - sociedade Floresta Aurora, Clube Náutico Marcílio Dias, associação satélite Prontidão... O Ébano é de 1962.

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Marco inequívoco é Tição, de Porto Alegre( grupo Tição, 1977 -1980). Revistas Tição em 1978 e 1979, dois números, e a publicação única do jornal Tição em 1980. Apresentação cuidada , boa diagramação e conteúdo envolvendo história, debate sobre racismo, questões sociais, políticas e culturais em geral, reafirmaram a possibilidade de uma imprensa negra vigorosa, renovada, séria e rica em abordagenstemas e profundidade.

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Referência importantíssima Tição dialoga com a imprensa negra da década: o anterior e clandestino A Árvore das Palavras, Afro-Latino-América (in Versus), Jornegro, todos paulistas, e outras publicaçãoes do Rio já citadas, sobre as quais Amauri Mendes Pereira poderia falar melhor. Asim Tição participa, muito significativamente dessa história jornalística longa e heróica em nosso País.

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Continuum literário nos séculos XX e XXI ccc ( calendário capenga dos cristãos ou calendário capenga cristão para quem prefere as coisas mais ajustadinhas). É que além dos citados Machado de Assis , Luiz Gama e Cruz e Souza o século dos anos 1900 teve o romancista e cronista Lima Barreto, poetas como Líno Guedes e Solano Trindade, seguidos por nomes como os de Oswaldo de Camargo e Carlos de Assumpção que iniciando antes mas juntando-se aos novos, fazem uma ponte para a literatura negra contemporânea. Negra ou de negros.

O vigor dessa fase iniciada nos anos de 1970 é atestado pela obra de escritores como Cuti, Éle Semog, Geni Guimarães, Arnaldo Xavier, Paulo Colina , Adão Ventura, Míriam Alves José Carlos Limeira, jônatas Conceição, Edson Cardoso Conceição Evaristo, Salgado Maranhão, Lepê Corrêa, Elisa Lucinda, Eustáquio Lawa (Eustáquio José Rodrigues), Edimilsom de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Lande Onawale, Cristiane Sobral... A lista é longa.Os citados representam os omitidos, injustiças à vista. E Cadernos Negros, com o Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa na trincheira representam uma periodicidade anual iniciada em 1978, alternando conto e poesia nas 27 edições completadas em 2004 com a marca do grupo Quilombhoje, em São Paulo.

Machado em seu tempo já escrevia peças teatrais. Em meados do século XX Abdias do Nascimento escreveu e fez montagens com o grupo do TEN. Rosário Fusco, Romeu Crusoé e Ironildes Rodrigues são também autores desse período rico. E Cuti, Joel Rufino dos Santos e outros fazem a dramaturgia contemporânea.

No Rio Grande do Sul, o poeta Luiz da Motta publicou comédia em O Exemplo (coleção 1902-1905). O mesmo jornal registra atividade teatral na sociedade Floresta Aurora desde o final do século XIX, resultando num duradouro Centro Dramático do clube em começos do sécolo XX. e desde o início o semanário ostenta poemas de negros, seções humorísticas delicosas, prosa variada. Semanário de LeoPardo taz em livro de 1926 as crônicas de Paulino de azurenha, escritas em estilo primoroso entre 1905 e 1909 para o Correio do Povo . Mais uma preservação de Aníbal Damasceno Ferreira. Preciosidade. O negro ou o misto afro Azurenha - LeoPardo - estava ao lado de Caldas Júnior na fundação do Correio e continuou como redator do jornal.

Na útima fase, 1916-1930, O Exemplo publica também autores brancos, alguns poetas da época, e seria preciso estudar a freqüência de negros em suas páginas. Para a lacuna entre os anos de 1930 e 1960, é bom lembrar que Antônio Lourenço, redator do jornal nos anos 20, publica sonetos no Correio do Povo ao menos na década de 70 e início dos anos 80, quando falece. Haverá outros autores entre o período Vargas e a ditadura militar de 1964? Pesquisar. A partir de 1965 o Teatro Saci fez bonito vencendo um festival Martins Pena ou montando a peça Um Cravo na Lapela, do dramaturgo branco Pedro Bloch, organizado sob a presidência de Eloy Dias dos Angelos e tendo Horacilda do Nascimento como vice-presidente a atriz Eni Maria de Neves e o ator Airton Marques representam os seus demais colegas nessa citação.

Da mesma época, surgindo em 1964 ou 65 é o GTM, Grupo de Teatro Marciliense, liderado por Luiz Gonzaga Lucena e integrantes do clube náutico Marcílio Dias. Aírton Silva e Geci Lemos exemplificam voz e talento no GTM. Pois o GTM e Grupo de Teatro Novo Floresta Aurora (com os irmãos Mauro Paré e Marilene Paré, entre outros) montaram juntos lá por 1969 o Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, no theatro São Pedro, tendo Aírton Marques como Orfeu. O ator negro gaúcho Breno Melo desmpenhou esse papel no cinema em orfeu no carnaval, de Marcel Camus, produção franco-brasileira. O filme ganhou Palma de Ouro em 1959 no festival de Cannes. Lá por 1971, ano em que surgiu o Grupo Palmares, de Porto Alegre , lançando a data 20 de novembro, foi possível assistir uma atividade teatral no Floresta em que sobressaiam o talento do ator não burilado e o potencial de Jorge Antônio dos Santos.

O Grupo Cultural Razão Negra inicio como Nosso Teatro em meados dos anos 1970 com a dramatização do conto Esperando o Embaixador, de Oswaldo de Camargo, montando na sequência três peças escritas e dirigidas por um componente do próprio grupo, Jaime da Silva: E Agora Negra? (1979) e O Convite (já em 1980) e uma outra intitulada o It...

A década de 70 já tem na poesia o trabalho de Alsina Alves de Lima, que em 1966 já mostrava um poema sobre a condição feminina em obra coletiva, Nossa Geração, do Diretório Estadual de Estudantes (RS). Talvez não tenha conseguido publicar seu livro Roda d'Água, de modo que, após sua morte, torna-se mais precioso o volume 6 dos Cadernos Literários do Instituto Cultural Português, editado em Porto Alegre em 1982. Ali estão um comentário crítico de Antônio Soares sobre a escritora e uma valiosa coleção de 15 poemas datados:1966 a 1981. Em Meu Poema, de 1971, ela diz:

Sendo pobre e mulher/ e sendo negra
quero meu poema/ como quero a vida
sem cercamentos/ sem desencontros
sem segregação
.

Palavra de negra. E numa em que se apareceriam, dos anos 80 ao final do século, autores como Paulo Ricardo de Moraes, poeta e contista com experimentações no texto dramático e na área de vídeo; Ronald Algusto, poeta inventivo, inquiridor da linguagem, com incursões também na crítica literária, além de compositor e intérprete musical; Maria Helena Vargas da Silveira, com poemas e prosa vária- contos, crônicas e outras utilizações artísticas da palavra; ou Jorge Fróes, inédito em livros mas com poemas e contos esparsamente.

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SANTOS, Irene (Org.). Negro em Preto e Branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre. Porto Alegre: Do Autor, 2005.
Créditos Imagens: Irene Santos

11 de dezembro de 2006

Lembrança e olvido nas literaturas afrobrasileira e guineense ( www.geocities.com)

por Moema Parente Augel, da Universität Bielefeld

Tomando como ponto de partida duas áreas aparentemente bastante diversas, uma amostra da literatura afrobrasileira e uma da literatura guineense, pretendo refletir sobre o papel da memória e suas transformações dentro do fazer literário e seu aporte para a compreensão do passado recente tanto no Brasil como na Guiné-Bissau.

Um tal paralelo interessou-me por vários motivos. O corpus de uma e de outra dessas literaturas é limitado, a datação é recente e estão interligadas por uma série de temas semelhantes, embora muitas vezes o tratamento seja diverso.

Os setores dominantes sempre pretenderam fazer prevalecer a sua interpretação dos fatos passados e assim influenciar a sociedade, obscurecendo outras interpretações. A versão oficial da História vem sendo hoje em dia, entretanto, continuamente posta em questionamento pelos grupos até agora excluídos ou silenciados, tais como as mulheres, as camadas economicamente desprivilegiadas, as minorias étnicas ou sexuais - fenômeno característico do pós-modernismo.

No Brasil, para que o discurso oficial dos detentores do poder, da glorificação nacional, da estabilidade política e do louvor ao esforço em prol do desenvolvimento do país pudesse ser proferido, foi preciso que se silenciassem outras falas, que se fizessem calar outras lembranças, latentes ou vivas na população, e que se procurasse eliminar a memória popular que guarda em seu seio uma outra versão dos mesmos acontecimentos. A recente literatura afrobrasileira resgata a realidade histórica ligada ao processo da escravidão e suas conseqüências, reinterpreta o passado, numa atitude consciente contra o esquecimento de certos fatos e visões que seus autores pretendem recuperar, apresentando novas facetas de acontecimentos históricos conhecidos. O mesmo se dá na Guiné-Bissau, onde os escritores, principalmente os romancistas, quebram com a tradição jogralesca de louvor aos chefes tribais, recusando-se a fazer eco aos encomiásticos discursos oficiais, ousando evocar outras realidades, emprestando a voz aos esquecidos ou conscientemente relegados ao limbo da não referência.

Apesar de todas as diferenças, as duas amostras literárias que constituem a base do presente estudo são analisadas sob um aspecto importante (mas não único), comum a ambas: representam uma literatura de vencidos, lançando mão da reconstituição da memória como base de um discurso denunciador, dirigido contra um discurso oficial e hegemônico diametralmente oposto.

O mito da democracia racial e a estratégia desenvolvida pelo discurso hegemônico brasileiro para defendê-la e divulgá-la são desmascarados de modo decisivo e emocional pelos autores afrobrasileiros. Na Guiné-Bissau, vai importar aos escritores criar, através da sua ficção, e em parte também da poesia, um contradiscurso que desmantele o ufanismo e a mitificação dos heróis da liberdade da pátria, dos quais o passado guineense está impregnado. Os autores aqui mencionados - Abdulai Sila e Filinto de Barros - relativizam, através da literatura, a versão oficial da gloriosa vitória contra as forças imperialistas estrangeiras por parte dos atuais dirigentes do país. Estes se consideram construtores da nação, os herdeiros do espírito da luta, os legatários do partido libertador e os continuadores da obra de Amílcar Cabral, reservando para si mesmos a encarnação e a afirmação da dignidade do povo guineense, a fundação da sua nacionalidade, a preservação da unidade nacional num país que se festeja como multicultural, multi-étnico e mesmo multirracial.

Devido ao fato de a Guiné-Bissau ter sido apenas uma fonte de fornecimento de escravos e de mercadorias para os exploradores portugueses praticamente até grande parte do século XIX, a sua ocupação e colonização sempre foram muito precárias e sente-se até hoje as conseqüências disso. No campo da literatura, por exemplo, só nos últimos vinte anos, isto é, depois da independência (1973), que se pode detectar um certo florescimento, ainda incipiente e modesto. O Brasil tem uma história muito diversa e o fato de ser independente há já cento e setenta e sete anos, em contraste com os vinte e seis anos de emancipação da Guiné-Bissau, dá-lhe uma outra maturidade, por exemplo no campo da literatura, mas não lhe apaga as cicatrizes resultantes da colonização e do escravismo. Embora em épocas diferentes e por meios diferentes, ambos os países libertaram-se do regime colonial português que deixou graves marcas por onde passou. No meu estudo, o que me vai sobretudo interessar serão os caminhos percorridos pelo instrumental literário como um fazer em função de um contra-discurso oposicional e emancipatório.

A Guiné-Bissau e sua prosa ficcional

Na Guiné-Bissau, país de história recente em vias de grandes transformações sociais, a sua incipiente literatura reflete tanto esse jovem passado e os caminhos da emancipação como o estado emocional dos guineenses ante a decepção causada pelo que se considera a traição dos ideais revolucionários por parte dos dirigentes. A produção literária contemporânea faz eco, na sua variedade, aos anseios e às preocupações da elite intelectual urbana, inconformada com a situação política e social do momento presente. Assim, dada a quase inexistência de fontes escritas de informação, travar conhecimento com as obras que aí se estão produzindo desde a independência é uma das melhores maneiras de compreender e apreender este pequeno enclave de língua oficial portuguesa, de cerca de 36.000 km2, no meio da costa ocidental africana.

Com seus três romances (Eterna paixão, A última tragédia e Mistida), Abdulai Sila, que é o fundador da ficção guineense, não se restringe à simples constatação do desastre em que resultou a libertação do jugo colonialista, nem se detém apenas no desfiamento das mazelas que cobrem o povo guineense: vai procurar os responsáveis e os denuncia, direta ou indiretamente. Filinto de Barros, com seu único romance Kikia Matcho, desenvolve, a seu modo, paralelamente à trama romanesca, um amplo esquema de explicação para basear suas críticas e sua análise do momento por que passava seu país. Também ele levanta a voz e denuncia, põe o dedo nas feridas abertas pelos seus próprios correligionários1.

Os recentes acontecimentos na Guiné-Bissau, que culminaram com o desencadeamento da guerra fratricida que por mais de um ano (mais exatamente de 7 de junho de 1998 a 7 de maio de 1999) tumultuou e desarticulou o país, estão contribuindo para que o discurso oficial hegemônico se esvazie e perca a sua aura, reiterando de forma dramática a triste atualidade da urgência de uma reinterpretação da História guineense.

A literatura afrobrasileira

Hoje em dia não é mais possível ignorar a existência da poesia negra, da prosa negra e do teatro negro brasileiros. A literatura afrobrasileira tem a mesma essência, não importa que sua forma seja a poesia, a ficção ou o teatro. Tem como pano de fundo, como leitmotiv a questão ontológica, visceral do ser e do estar-no-mundo como negro numa sociedade que se diz e que se quer branca e como tal se comporta. Há temas que se repetem e sempre de novo aparecem, de forma insistente e catársica muitas vezes. Alguns deles são comuns à literatura guineense e africana em geral, mas outros têm a ver com a condição de diáspora em que vivem os afrodescendentes.

A literatura afrobrasileira é, desde o momento em que se quis e declarou como tal, muito recente, tão recente como a independência da Guiné-Bissau - e suas manifestações literárias. Mesmo tendo havido alguns precursores (lembremos aqui Solano Trindade, Lino Guedes), somente a partir da década de setenta que os escritores negros brasileiros passaram a publicar com regularidade e crescente freqüência2. Falta, entretanto, ainda muito para que seja conhecida e aceita pelo nosso mundo acadêmico e literário, lacuna que certamente não acontece por acaso.

Escritores como Solano Trindade e Lino Guedes, Oswaldo de Camargo, OLIVEIRA SILVEIRA, Cuti, Paulo Colina, Éle Semog, Elisa Lucinda, Miriam Alves, Geni Guimarães ou ainda Muniz Sodré, Joel Rufino, Eustáquio José Rodrigues, Edimilson Pereira, Salgado Maranhão, Lourdes Teodoro, Conceição Evaristo e muitos outros, todos eles declaradamente escritores negros, não podem mais ser silenciados e fazem parte definitivamente do cenário da literatura nacional. A partir da obra de alguns deles, ressaltarei algumas particularidades temáticas que estão mais diretamente ligadas a esta análise.

Na escolha dos textos que servem de base a este estudo, não posso deixar de levar em consideração certos aspectos relativos ao contexto sociocultural aqui ressaltado, transparecendo através da recuperação da memória coletiva, da revisão do passado colonial, da crítica à interpretação hegemônica da história, elementos comuns tanto aos afrodescendentes como aos guineenses. O verso é sempre um dedo em riste, diz Geni Guimarães no seu poema Parto sem dor (1993:36) e a literatura não pode ser tão somente deleite estético.

Lembrança e olvido

Nossas recordações pessoais vão muito além das nossas próprias experiências, envolvendo lembranças antigas e passadas. O passado aflora sempre, penetra nas experiências do hoje, matizando, influenciando nossas percepções.

As reminiscências de cunho pessoal, entretanto, possuem igualmente uma componente social, coletiva, pois "o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária" (Chaui, 1987, p. XXX).

A memória coletiva, enraizada nas lembranças individuais, é de importância fundamental tanto para os indivíduos em si como para o grupo do qual fazem parte esses indivíduos, para a sua localização num contexto geográfico e social (seu estar-no-mundo) e também para a sua própria identidade (seu ser-no-mundo).

A memória é o resultado de uma prática humana, uma faculdade mental ou intelectual, devendo por isso ser exercitada, permanentemente dinamizada através de técnicas ou métodos chamados mnemônicos. Existem técnicas mnemônicas coletivas que têm por finalidade manter acesa a chama de lembranças de uma comunidade. Monumentos, estátuas, as paradas cívicas ou procissões religiosas são exemplos da técnica mnemônica coletiva (J. Assmann, 1993, p. 350 e ss.). O motivo e a finalidade dessas técnicas mnemônicas culturais é o asseguramento e a continuidade da identidade social, indispensável para a auto-estima do grupo (ibd.).

O não exercício da memória pode provocar o fenômeno contrário do esquecimento, do olvido, da amnésia e que pode ser tanto individual (fenômeno patológico), como pode ser também coletivo (fenômeno social). É ocasionado, por exemplo, pelo fato de certos acontecimentos ou pessoas, considerados pelo poder hegemônico como prioritários ou de maior importância, serem postos forçadamente em relevo para o reforço da própria imagem, levando ao esquecimento outros fatos ou indivíduos considerados então de menor importância ou mesmo completamente silenciados. Num estado autoritário, uma das formas simbólicas de impor e demonstrar a autoridade do governo pode manifestar-se através de rituais que enfatizam esse poder.

No Brasil, e da mesma forma na Guiné-Bissau, dá-se exatamente o que acabo de descrever: o poder hegemônico seleciona os episódios da história recente que têm que ver com os seus interesses e esquece - e faz esquecer - outros. Por exemplo, o papel dos grupos religiosos tradicionais foi considerado contrário à nova ordem nacional guineense, depois da independência, taxado de primitivo e portanto devendo ser ultrapassado, o que foi feito à custa de violências e crimes. No Brasil, também se podem encontrar exemplos da mesma atitude, como o caso dos núcleos de resistência escrava terem ficado esquecidos, não mencionados (ou só superficialmente) nem mesmo nos livros de História do Brasil.

Contra as verdades impostas, a literatura pode assumir posições capazes de serem analisadas como desconstrutivistas, uma vez que catapulta para a periferia do interesse dramático o que até então era considerado pelos representantes do poder hegemônico como essencial e absoluto, trazendo para o centro da leitura elementos até então vistos como de menor importância ou que foram mesmo completamente esquecidos, emprestando a voz a bocas subalternas e até agora inaudíveis.

Para Jacques Derrida, a desconstrução leva a uma prática política, a uma tentativa de desvendar ou desmascarar a lógica com a qual um determinado sistema mental - e com ele todo um sistema de estruturas políticas e instituições sociais - mantém a todo custo o seu poder.

Passado infame

A imagem do negro bom de bola, da farra e da festa, da mulata tipo produto de exportação - tudo isso tenta mascarar o fato de o negro estar numa posição de predominante desvantagem. Essa desvantagem tem suas raízes: com que intensidade o trauma da escravidão deixa marcas profundas na autoprojeção do afrobrasileiro está muito patente nestes versos de OLIVEIRA SILVEIRA, poeta negro do Rio Grande do Sul. Ele encontrou suas origens - como sugere o título de um dos seus poemas - tanto No leste/ no mar em imundos tumbeiros, / em malditos objetos / troncos e grilhetas, como também nos lanhos de minha alma / em minha gente escura/ em meus heróis altivos.

Esse passado, infame e desditoso, não pode nem deve ser silenciado: Passado infame,/ vou te charquear o lombo a laço./ Passado infame/ vou te sujar a cara a cuspe/ vou te moer o corpo a ferro. Mas te quero bem vivo/ pra renovar meu ódio justo/ e manter alto o meu orgulho (OLIVEIRA SILVEIRA, Passado infame).

Foram milhões os africanos por força levados para trabalharem no "novo mundo". E se a literatura nacional festeja e aplaude o magistral poema de Castro Alves, Navio Negreiro, ignora ou desconhece outras manifestações poéticas de imenso valor que expressam numa visão de dentro, o mesmo drama. A escravatura, a vergonha imensa na história da humanidade, levou ao brutal arrastamento de milhões de africanos para a América e foi comparada pelo poeta gaúcho a uma "charqueada grande":

Um talho fundo na carne do mapa: Américas e África margeiam/ Um navio negreiro como faca:/ mar de sal, sangue e lágrimas no meio// [...] e sal e sol e vento sul no corte/ de uma ferida que não seca nunca (OLIVEIRA SILVEIRA, Charqueada grande).

A interpretação da história hegemônica, povoando os livros infantis (e não só) da imagem do escravo passivo, cordato e bondoso, amoldado aos seus senhores, as "Mãe Preta", e os "Pai João" encontra viva resistência por parte dos afrobrasileiros contemporâneos que não querem se identificar senão com os heróis que se rebelaram contra o cativeiro: Sem essa de mãe-preta e pai-joão/ eu quero é o passado bom! // Na vontade mais funda/ e vulcânica de mim/ eu quero é o passado bom! / Eu quero o passado bom/ do quilombo dos negros/ livres no mato e de lança na mão/ Da guerra na Bahia - da negrada transbordando das casas/ derramando-se na rua/ de pistola e facão! ((OLIVEIRA SILVEIRA, Quero o passado bom).

Palmares reinventado

Toda a época colonial conheceu a reação ao regime escravocrata, uma cadeia ininterrupta de sublevações e resistência à ordem estabelecida pelo regime senhorial. O primeiro registro de que se tem notícia foi o de um quilombo na Bahia no ano de 1575. Daí em diante, o protesto contra trabalho forçado e a perda de liberdade não mais cessou. Não se tratou de pequenas revoltas pontuais e raras, como quer deixar crer a historiografia oficial, mas permanentes e diversificadas formas de resistência e de protesto, de inconformismo e de tentativas não só de fuga mas de reorganização da ordem social surrupiada pelo tráfico negreiro de Norte ao Sul do Brasil.

E é graças aos intelectuais negros brasileiros que se está resgatando contemporaneamente esse capítulo da história do Brasil, um dos temas preferidos pela literatura afro-brasileira. Palmares, o maior dos quilombos, símbolo da resistência e do orgulho negro restaurado, é assim cantado, entre outros poemas: Eu não te esqueço, meu povo/ se Palmares não vive mais/ inventemos Palmares de novo (José Carlos Limeira, Quilombos)

Não só a conclamação à revolta, mas sobretudo uma heroização dos antepassados ajuda a manter bem alto o orgulho e se envolve numa enorme força lírica. Zumbi, o grande herói dos quilombos, o senhor dos caminhos, como se expressa Jônatas C. da Silva, poeta baiano, que vê como tarefa do poeta: Resgatar tua presença/ tua firmeza de propósito/ de amor e liberdade/ pela raça (Zumbi é senhor dos caminhos).

E a exemplo do que aconteceu no passado, ainda: É preciso/ que se galgue/ a poeira levantada/ e se ache entre as palmeiras/ lanças/ guerreiras/ intactas (Abelardo Rodrigues, Em busca de Palmares).

O dia da morte do grande guerreiro é festejado hoje no Brasil inteiro, mais uma vez devido à iniciativa de grupos negros: Dia vinte de novembro/ entre as palmeiras do Palmar/ último grito de guerra no ar/ Dia vinte de novembro,/ entre as montanhas do Palmar/ os duros músculos do herói/ guiando seu braço ágil/ na luta desigual/ [...]) Dia vinte de novembro,/ entre mensagens do Palmar/ tambores de orgulho e brio/ conclamando a lutar ((OLIVEIRA SILVEIRA, , Vinte de Novembro).

É o Dia Nacional da Consciência Negra, em franca oposição às comemorações do treze de maio.

Izabel versus Zumbi

Na busca de possíveis recursos para manter a memória viva, por parte do poder hegemônico no Brasil, do que lhes interessa guardar relativo ao tempo da escravidão e ao período logo depois, sobressai o grande respeito que é prestado àquela que é considerada a mãe benemérita e salvadora dos cativos, a Princesa Isabel. Mas a famosa Lei Áurea não passou de um ato formal sem de fato conseqüências positivas para os que nela se enquadravam. Os afrodescendentes, 111 anos mais tarde, continuam sob os humilhantes açoites da pobreza, da exploração do trabalho, do desrespeito aos seus direitos.

Já em 1970, o poeta negro gaúcho (OLIVEIRA SILVEIRA, admoestava: Treze de maio - traição/ Liberdade sem asas/ Fome sem pão (13 de Maio).

A abolição da escravatura não foi seguida por medidas sociais nem econômicas que possibilitassem aos recém libertos um novo começo de vida. A respeito, Adão Ventura, de Minas Gerais, assim se exterioriza: Minha carta de alforria/ não me deu fazendas nem dinheiro no banco,/ nem bigodes retorcidos (Adão Ventura, Negro Forro).

Muito pelo contrário, afirma o poeta mineiro: Minha carta de alforria/ costurou meus passos/ nos corredores da noite/ da minha pele (ebd.).

Ou, como o paulista Paulo Colina, ironicamente conclui: A Princesa esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho (Pressentimento).

A amarga realidade do quotidiano da população afro-brasileira reforça a dúvida na eficiência do 13 de maio. Assim, Éle Semog, poeta negro do Rio de Janeiro, manda um "lembrete": Liberdade se toma / Não se recebe./ Dignidade se adquire/ Não se concede (Se ela faz eu desfaço).

Mas o povo não se ilude e reage a seu modo. O aviso é claro e preciso: Quilombo não se destrói com tiro e tapeação/ quilombo é calombo grande que guarda a semente viva/ quilombo é riso rasgado/ ungüento pressa ferida/ feita com faca branca herdada por iô-iôs (Cuti, Resposta).

Em outro poema do mesmo autor, ele admoesta: Que os ancestrais apontem nosso melhor caminho!"/ [...] ninguém negue sua herança de umbigo!/ [...]. Há uma estrada a ser percorrida do lamento passado ao riso futuro/ por sobre as costas do tempo lanhadas de sofrimento/ [...]. Vamos destapar bocas de escravos sufocadas em cada/ poro do povo (Cuti, Veio).

Ou ainda: É tempo [...] reabrir [...] os espaços do quilombo/ [...] jogar lenha na fogueira da memória pra que haja luz e calor/ e ouvir histórias vividas de gente encarquilhada no pito/ e na palha do cigarrinho (Cuti, Ventania).

Muito se teria ainda a registrar tanto na poesia como na prosa afrobrasileira. Mas passemos ao outro elemento da nossa comparação.

A prosa contemporânea na Guiné-Bissau

Conquistada a independência, as novas burguesias e as novas elites estatais africanas conseguiram estabelecer um sistema de conservação do poder que passou a funcionar a todo preço, baseado na repressão, no partido único e no governo do "homem forte". O resultado foi que em muitos países se instalou uma oligarquia corrompida, preocupada com o seu próprio enriquecimento e com as suas próprias vantagens, enquanto que o povo continuou nas mesmas dificuldades, lutando por uma sobrevivência material e moral, cada vez mais miserável. As esperanças existentes outrora, quando o fim da colonização, cada vez mais próximo e concreto, animava aos que lutavam pela libertação, acenando para um mundo de igualdade e justiça, foram substituídas pela frustração, pelo derrotismo e pelo acomodamento3. Tal estado de espírito é comum a toda a África negra.

Na galeria de personagens de Abdulai Sila destaca-se, no seu terceiro e mais recente romance, intitulado Mistida, um desfile alucinante de figuras absurdas: Amambarka, Nham-Nham, Yem-Yem. Sobressai-se o aberrante e assustador Amambarka, parricida, ganancioso, viciado e execrável, cujos traços repugnantes foram hiperbolizados pelo romancista até a exaustão (cf. p. 87-96). Esse nome foi tirado da língua mandinga, sendo um lexema que tem conotação de coisa ruim, do que não presta. Nham-Nham, onomatopéia indicadora do ato de comer, é um ser repugnante e alienado, cego pelo poder, entorpecido pela bajulação, idiotizado mas perigoso, completamente dependente do diabólico Amambarka. Yem-Yem, o "carrasco", é outra figura intangível, enredado na busca da palavra esquecida (ibid., p. 161), aterrorizador das pessoas (ibid., p. 171).

Esses seres chocantes, porém, foram inspirados em pessoas reais, deformadas e caricaturadas, para os menos avisados impossíveis de serem reconhecidas mas nem por isso menos verdadeiras nem menos ameaçadoras, pois faz parte da arte de convencer lançar mão de recursos do horror. Os protagonistas de Mistida, aparentemente absurdas personagens, são verdadeiros atores da sociedade atual - e não só da Guiné-Bissau - e estão, cada um a seu modo, em busca de "estratégias individuais postas em jogo à procura de saídas e novos sentidos que permitam sobreviver à desestruturação", como disse Teresa Montenegro no prefácio. Mais uma vez, apesar dos horrores que enchem este seu terceiro livro, Sila lança sua mensagem de esperança, de teimosa esperança: existe uma perspectiva para seu sofrido país. Apesar dos montões de lixo, material ou humano, há as Mama Sabel, as Mbubi, as Ndani e as Djiba Mané, personagens femininas fortes e até certo ponto contraditórias, sumamente positivas, com as quais o autor se identifica e que personificam a comunidade subalterna, sem poder, mas vigilante e altiva.

Em Mistida, Abdulai Sila escolheu as vias oblíquas do absurdo e do paroxismo para pôr a descoberto o indizível, aquilo que, embora não tivesse sido esquecido, estava obliterado e silenciado. Esse caminho ziguezagueante tornou-lhe possível recordar um passado recente cheio de contradições e afrontar um presente já agonizante que se queria (ou ainda quer?) eternizar no futuro. Quem está seguindo os acontecimentos atuais na Guiné-Bissau pode, mais do que nunca, captar os lances terrivelmente proféticos de Mistida.

Filinto de Barros: acerto de contas com o passado?

Filinto de Barros afirma que seu romance Kikia matcho não passa de um pequeno exercício de ficção. Nem história, nem sociologia, nem etnologia, nem política, tão somente uma abordagem que se pretende dinâmica do processo de síntese sócio-cultural de um Povo (cf. Barros, 1998, p. 7).

O título é a designação crioula para o mocho e a essa ave são atribuídas na Guiné-Bissau propriedades diversas: pode ser mensageira do bem e do mal, mas sobretudo é ligada a maus presságios e à má sorte. Através do kikia e da sua simbologia, Filinto de Barros introduz o leitor e a leitora no mundo mágico e mítico africano ao mesmo tempo em que, pela interação das personagens, estabelece a ponte entre o passado e o presente.

Em seu conjunto, o livro Kikia matcho encerra uma soma de informações sobre o processo da independência e os primeiros passos de um Estado em formação. Essas informações são a razão de ser da obra, a estória constituindo apenas um pretexto. Ao mesmo tempo em que informa, ativo participante que foi da gestação e do momento desse parto, Filinto de Barros mobiliza os diferentes níveis da narrativa, direcionando-os tanto para o exercício dialético da compreensão do processo como para o julgamento dos seus resultados. Informação a nível do passado e interpretação a nível do presente, o romance deixa entrever sombrias perspectivas para o futuro. É sobretudo uma constatação dos acontecimentos contemporâneos com um olhar para o já acontecido, com o fito de esclarecer, explicar a situação atual do país.

O abandono sofrido pelos antigos combatentes da liberdade da pátria, cujo soldo não basta para um saco de arroz, é mostrado bem cruamente em Kikia matcho e seria um exemplo do desmascaramento intencionado pelo romancista Filinto de Barros.

Uma lembrança presente no coração do povo, que não faz parte da herança hegemônica, foi ainda evocada por Filinto de Barros que pôs a descoberto o fato do combatente morto ter perpetrado atos menos nobres, vergonhosos mesmos, não coadunando com a aura de heroismo que sempre envolve os "combatentes da liberdade da pátria". O autor ousou assim confessar o lado podre da gloriosa luta da libertação nacional, o abuso nunca mostrado às claras da utilização indevida das armas, evidenciando a perversão da "cultura da guerra", presente não só no campo inimigo. O processo de revirar ou reverter certas ambigüidades morais e factuais, cristalizadas em poderosos mitos patrióticos, faz parte da construção social da realidade, para usar a expressão divulgada a partir de Berger e Luckmann na Sociologia4. Ela é desmontada aqui e confrontada com uma outra visão, oposta e desafiadora.

Somente alguns poucos meses após a publicação desse romance, a 7 de junho de 1998, como já disse, eclodiu no país uma revolta no seio dos grupos dirigentes, entre representantes dos heróis da libertação transformando-se em guerra aberta e dolorosa que, depois de onze meses de sempre renovados conflitos armados, encontrou uma solução, que esperemos seja duradoura, a 7 de maio deste ano de 1999. Os presságios do Kikia Matcho ou os horrores acumulados em Mistida parece se terem confirmado. O sangrento embate entre fracções do exército nacional e contra o povo que conta entre os mais pobres do mundo, relança o questionamento sobre a legitimidade do regime tido como revolucionário, há quase trinta anos no poder, e sobre seus dirigentes, em grande parte os mesmos desde a independência. O legendário e carismático PAIGC está onipresente no romance de Filinto de Barros. Os donos do poder estão caricaturados até a desfiguração no romance Mistida, de Abdulai Sila. A revolta militar encabeçada pelo chefe do Estado Maior do Exército, General Assumane Mané, contra o governo dirigido pelo Presidente João Bernardo ("Nino") Vieira é expressão da crescente insatisfação e da decepção aqui tantas vezes já exteriorizadas, da parte dos antigos combatentes pela liberdade da pátria, compartilhadas pela grande maioria da população.

Esses recentes acontecimentos na Guiné-Bissau estão contribuindo para que o discurso oficial hegemônico se esvazie e perca a sua aura, reiterando de forma dramática a triste atualidade da urgência de uma reinterpretação da História, reflexão essa encetada pelos romancistas pioneiros Abdulai Sila e Filinto de Barros.

Considerações finais

Todos os escritores aqui referidos têm em comum uma tarefa de recuperação da africanidade e da dignidade perdidas, de procura e de afirmação da identidade nacional: tanto os afrobrasileiros como os guineenses, cada grupo a seu modo, cada autor com seu estilo próprio, com sua voz única e específica. Trata-se de uma literatura exortativa, sim, literatura engajada, literatura social, no seu sentido mais amplo, mas literatura exercício estético de beleza e busca do eu e do nós, mais profundo e mais verdadeiro, que têm a ver com raízes, umbigo, magma; literatura incitamento a um mergulho dentro de um passado doloroso e de difíceis lembranças, incitamento à empatia, ao sentir com, ao fazer com, incitamento à adesão, ao "concerto do djunta mon", de que fala o escritor guineense Tony Tcheka (1996:69).

O passado, tanto o passado bom como o passado infame, tem que continuar sendo relembrado como uma parte da identidade do africano assim como do afrobrasileiro. Embora consciente de que um número cada vez mais numeroso de afrodescendentes tenham hoje em dia alcançado um nível social e financeiro muito elevado e a franja dos bem sucedidos seja cada vez mais larga, no mesmo poema Cuti não deixa esquecer: Hoje é amanhã e ontem [...] / chicotes modernos não só relembram são chicotes/ que batem que rendem mais aos fundos senhoriais (Cuti, Resposta).

Cuti, que sempre, em todos os seus escritos, convida e incita à reflexão, admoesta: Quem disse [...] que é preciso calar a voz dos ancestrais? (ebd).

Bibliografia

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Notas

1. Sobre a ficção e a literatura guineense em geral, cf. Augel 1998.

2. Oswaldo de Camargo publicou em São Paulo seu primeiro livro, Um homem tenta ser anjo, já em 1958; de (OLIVEIRA SILVEIRA, no Rio Grande do Sul, apareceu Germinou, em 1962. Cuti, em 1976, deu à estampa em São Paulo seus Poemas da carapinha. Os Cadernos Negros, publicação coletiva que já tem vinte e dois números, começou em 1978. Para maior conhecimento da produção literária afrobrasileira, cf., entre outros, Zilá Bernd 1984, 1987 e 1992.

3. Sobre o assunto, cf. Guy Ossito Midiohouan, L'idéologie dans la littérature négro-africaine d'expression française, Paris: L'Harmattan, 1986:208 e ss.

4. P. L. Berger e T. Luckmann foram os teorizadores do construtivismo que considera os fenômenos sociais como criações da sociedade e não existentes por si só.